Parece que Cavaco Silva se recusou a falar da paralisação dos camionistas no “dia da raça”. Ipsis verbis. As palavras presidenciais engendraram um desconforto indómito entre certas luminárias da extrema-esquerda. Secundadas pelos netos de Estaline, logo as baratas tontas do Bloco vieram a terreiro clamar contra as designações impróprias de “raça” e de “dia da raça”, aplicadas pelo mais alto magistrado da Nação. Do alto do seu cachimbo, o Professor Fernando Rosas fez saber, urbi et orbi, que considerava absurda a ideia de uma raça portuguesa com características que ele consignou não saber quais eram.
Parecendo que não, participo nas perplexidades do insigne militante: no bairro da capital onde cresci, é possível andar dezenas e dezenas de metros sem se encontrar um único caucasiano na rua. Ali, nos últimos anos, o comércio castiço de uma popular zona lisboeta foi cedendo o passo a estranhas locandas que, vá-se lá saber porquê, me evocam, vezes sem conta, as piores alfurjas. Ao contrário do professor Rosas, e com sua licença (não tardará muito que ela seja necessária), isto desagrada-me e incomoda-me. Sempre me conveio a ideia de ter nascido português, de comer caldo verde e bacalhau com batatas, de falar na língua suave com que Camões e Pessoa edificaram Os Lusíadas e a Mensagem, monumentos oceânicos que universitários do jaez do professor Rosas, numa obstinada incompreensão, se afoitam a denegrir, deturpar e silenciar. Se o insigne militante mo conceder, e se isso ainda não for crime decretado pelas leis da República, quero aqui expressar a minha mágoa por quase já não conseguir reconhecer os lugares da minha infância e da minha juventude. Só que desta vez o culpado não é o maldito betão, monstruosidade vulgar a que os próceres de Rosas endossam as suas melhores vociferações. In casu, o problema está em quererem-me fazer crer que tanto me dá reclamar uns quantos costados beirões como abdicar sem mais das primeiras memórias, dissolvendo-as num magma étnico que oscila entre o Bangladesh insólito e algumas plagas subsaarianas. E nisso, pelos vistos, se conjuram agora todos os arautos do "ser genérico". Na verdade, tratando-se do essencial, nada distingue os comunistas dos bloquistas (e nem sequer de grande parte dos socialistas e outros democratas, apenas jungida ao silêncio por uma réstia de pudor na escolha das companhias ou por avisado calculismo táctico). Por falar em África: não me recordo de alguma vez ter escutado ao professor Rosas uma só palavra de indignação pelos inúmeros assassinatos de portugueses que, nos últimos anos, foram sendo liquidados na África do Sul. Não sei se o preclaro professor se bastará com uma daquelas rasteiras explicações sociológicas que para tudo se arranja e que nunca explicam nada. Mas estou certo de que, de um ponto de vista racial, os criminosos sul-africanos têm uma visão bem clara do assunto. E, de resto, muito distante da de um Teixeira de Pascoaes, que via na raça “um certo número de qualidades electivas, (num sentido superior) próprias de um Povo, organizado em Pátria, isto é, independente, sob o ponto de vista político e moral”. “Portugal”, diz depois Pascoaes, “é uma Raça, porque existe uma Língua portuguesa, uma Arte, uma Literatura, uma História (incluindo a religiosa) – uma actividade moral portuguesa; e, sobretudo, porque existe uma Língua e uma História portuguesas”.
Calculo que nada disto convenha ao fumegante Rosas, emaranhado na estreiteza dos quadros mentais em que penosamente se move. Nem sequer o facto de Pascoaes sempre ter sido pela liberdade. Estaria tentado a aconselhar-lhe a leitura da entrevista que o vate de Gatão, perto do final da sua vida, concedeu a um jornal nacional, declarando público e veemente apoio à candidatura presidencial do General Norton de Matos. Mas, para Rosas como para muitos, Pascoaes é ainda um nome maldito e, no estado a que chegámos, continua a haver quem julgue poder declarar proscrita a força luminosa de certas palavras.